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O Escritor Evangélico e a Língua Portuguesa

Acad. Jefferson Magno Costa

Palestra realizada na Sessão Plenária de 8 de agosto de 2016.

Excelentíssimo senhor Presidente da Academia Evangélica de Letras do Brasil, Reverendo Guilhermino Cunha; excelentíssimas demais autoridades presentes; caríssimos convidados, nobres confrades e confreiras:

Ninguém hoje espere ingenuamente tornar-se um escritor hábil, seguro do seu ofício e influenciador de sua geração sem, antes, esforçar-se para conhecer as regras e as riquezas expressionais de sua língua.

Só conseguiremos atuar impactante e eficientemente como escritores evangélicos se nos esforçarmos para redescobrir e dominar os amplos recursos da língua portuguesa.

É nosso dever estudá-la permanentemente, com a mesma persistência que o aclamado poeta François Coppé demonstrou no estudo do francês. Ele chegou a responder a uma norte-americana que lhe perguntou se ele falava inglês: “Não, minha senhora... Continuo a aprender francês”.

 A língua que foi enaltecida por Camões, Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Herculano, Camilo Castelo Branco, Almeida Garret, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Drummond, Florbela Espanca, Luís Fernando Veríssimo, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles e tantos outros escritores notáveis na antiguidade e na modernidade necessita hoje mais e mais de embaixadores evangélicos que a enobreçam, que a enriqueçam, que a prestigiem, que a divulguem pelo mundo inteiro por meio de obras-primas de interesse cristão e universal.

  Assim fizeram em inglês os nossos irmãos em Cristo John Bunyan, com O Peregrino; John Milton, com O Paraíso Perdido; C. S. Lewis, com a série As Crônicas de Nárnia, e outras obras. Isto só para citarmos alguns dos grandes escritores evangélicos que escreveram e ultrapassaram as fronteiras evangélicas, conquistando também milhares de leitores no mercado secular.

  Nós, escritores evangélicos, estamos em dívida para com nossa língua, a portuguesa; língua que o poeta Manuel Bandeira usou para, em um soneto, honrar o imortal autor de Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões. Disse Bandeira:

Quando n'alma pesar de tua raça

A névoa da apagada e vil tristeza,

Busque ela sempre a glória que não passa,

Em teu poema de heroísmo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça,

Tu resumiste em ti toda a grandeza:

Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça

O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente

Da estirpe que em perigos sublimados

Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá sem poetas nem soldados,

A língua em que cantaste rudemente

As armas e os barões assinalados.

 “Minha pátria é minha língua”, disse o genial poeta português Fernando Pessoa. E também é a nossa, a pátria dos escritores evangélicos brasileiros. O gramático Napoleão Mendes de Almeida fez uma oportuna advertência no prefácio de sua Gramática Metódica. Disse ele:

“Conhecer a língua portuguesa não é privilégio de gramáticos, senão de todo brasileiro que preza sua nacionalidade. É erro de consequências imprevisíveis acreditar que só os escritores profissionais têm a obrigação de saber escrever. Saber escrever a própria língua faz parte dos deveres cívicos.”

Todavia, não é minha intenção deixar subentendido aqui que só escrevem bem aqueles que possuem conhecimentos gramaticais tão sólidos como os de um Napoleão Mendes de Almeida, os de um Celso Cunha ou os de um professor Pasquale Cipro Neto, e outros. Não cheguemos a tanto; a não ser que tenhamos inegável vocação para o estudo específico da língua, conforme tiveram os pastores Eduardo Carlos Pereira e Vittorio Bergo, autores de gramáticas e de outros trabalhos de natureza filológica nacionalmente reconhecidos.

"Dicionarista e gramático não são sinônimos de bom escritor. Tem-se observado, por exemplo, que os grandes dicionaristas, os grandes gramáticos, embora conhecendo todos os recursos da palavra, todos os processos que levam uma pessoa a escrever bem, raramente são grandes escritores”, foi o que nos lembrou o filólogo português Cândido de Figueiredo.

É um fato que todas as histórias das literaturas confirmam. Escrever bem requer algo mais do que sólidos conhecimentos linguísticos. Requer sensibilidade, imaginação e um toque pessoal de arte (também conhecido como originalidade). Em uma palavra: talento.

Portanto, ninguém adquire capacidade e sensibilidade literárias lendo tão-somente gramáticas. O estudo da gramática não é a melhor forma de alguém aprender a amar ou dominar o seu idioma. O estudo da gramática não faz escritor, faz filólogo. Só os grandes escritores são capazes de nos ensinar a escrever bem.

O melhor, o mais agradável e fecundo caminho para alguém familiarizar-se e passar a amar o seu idioma é lendo os melhores livros dos melhores escritores da literatura que esse idioma produziu. Mas fazer essa leitura não significa que devemos dar um mergulho em milhares de obras; o essencial é que leiamos as melhores.

Para quem já é ou deseja tornar-se escritor, o amor ao idioma materno é fundamental. O poeta português António Ferreira (1528-1569), grande apaixonado pela língua portuguesa, numa época em que muitos escritores portugueses escreviam em espanhol por se envergonharem do seu idioma ou ambicionarem maior notoriedade, deixou-nos a seguinte estrofe de uma ode:

Floresça, fale, cante, ouça-se e viva

a portuguesa língua, e já onde for,

Senhora vá de si, soberba e altiva;

Se até aqui esteve baixa e sem louvor

Culpa é dos que a exercitam,

Esquecimento nosso e desamor.

Nós, brasileiros, que produzimos um soneto de exaltação à língua portuguesa, como este belíssimo e perfeito, escrito pelo poeta carioca Olavo Bilac:

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura;

Ouro nativo que na ganga impura

a bruta mina entre os cascalhos vela.

Amo-te assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela,

E o arrolo da saudade e da ternura.

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo:

Amo-te, ó rude e doloroso idioma!

Em que da voz materna ouvi: “Meu filho”,

Em que Camões chorou no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho.

Nós que temos um lastro, uma herança tão rica e tão bela composta de obras literárias que vêm sendo escritas por exímios artistas da palavra, estamos hoje, em muitos aspectos, em uma situação de vergonhoso desconhecimento das riquezas do nosso idioma.

O jornalista maranhense Lago Burnett, que durante muitos anos chefiou a redação de O Jornal do Brasil, descreveu num momento de desabafo no seu livro A Língua Envergonhada, a atitude de muitos brasileiros para com essa que é considerada a segunda língua mais rica em sonoridades, a segunda dotada de maior musicalidade, entre todas as que se derivaram do Latim. (Só para os curiosos: a primeira é o italiano). Eis o texto, veemente e irônico, do jornalista:

"O brasileiro não suporta a sua língua. Se lhe fosse permitido escolher, preferiria qualquer outro idioma, até mesmo o sânscrito, o latim, o hebraico, o iídiche, o patoá, o banto. Conquanto não fosse o português, pouco importaria que se tratasse de língua morta, extinta ou dialeto. Por força do colonialismo cultural, acentuado pela linguagem mercadológica dos veículos de comunicação, de muito bom-grado a opção brasileira recairia sobre o inglês – não o de Oxford, mas o da Praça Mauá.

"Coramos de pudor, criando situações embaraçosas para nós próprios, toda vez que não conseguimos atinar, de público, com o significado de uma expressão anglo-saxônica, e nos mortificamos de despeito por não conseguir recitar com sotaque nova-iorquino uma ode olímpica à alienação de Ipanema. Não por veneração reverenciamos o idioma de Shakespeare, mas por mera subserviência ao sentimento mercantil do multinacionalismo linguístico." (A Língua Envergonhada. 3a Ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991, p. 15).

E essa situação de vergonha e descaso pela língua portuguesa demonstrados por muitos dos que a usam não é tão recente, conforme alguns poderiam imaginar. De tanto a ultrajarem, a aviltarem, a envilecerem pelo uso desleixado e vergonhoso, os intelectuais de Portugal reagiram e passaram a patrulhar e censurar os maus usuários dessa língua outrora enobrecida por Antônio Vieira, Eça de Queiroz, Machado de Assis e outros grandes autores. E foram tão severas as recriminações dos intelectuais portugueses, que o romancista carioca Lima Barreto, em um de seus quatro grandes romances, o Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, levou seu personagem principal a redigir o seguinte e irônico requerimento:

"Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se veem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma – usando do direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o Tupi-Guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. Cônscio de que a Câmara e o Senado pesarão o seu alcance e utilidade, pede e aguarda deferimento. "

Quando o jornalista Giovanni Ricciardi foi ao apartamento do escritor Miguel Jorge a fim de entrevistá-lo para o livro Auto-retratos (que reúne 23 entrevistas com escritores brasileiros contemporâneos, e foi publicado pela Editora Martins Fontes em 1991), viu este lembrete na parede da sala de trabalho de Miguel Jorge:

Refazer, refazer sempre.

Refazer, custe o que custar.

Refazer cada página, parágrafo, frase, palavra...

Apesar de o lembrete parecer um tanto ingênuo, não podemos ignorar que este é um dos segredos praticados por todos os grandes escritores. Eles escreveram muito para eles mesmos, antes de escrever para os outros.

Todos os livros sobre arte de escrever aconselham a não nos contentarmos com a primeira redação de um texto. Devemos aperfeiçoar esse texto, reescrever suas frases, corrigir, corrigir, até que pareça impossível fazer melhor.

O romancista francês Gustave Flaubert costumava reescrever cinco ou até seis vezes uma única página ou um único parágrafo de suas obras. Escrevendo numa época em que era comum os escritores publicarem de 20 a 50 livros (Balzac, por exemplo, só para o famoso conjunto de romances intitulado A Comédia Humana, escreveu 89 obras), Flaubert só escreveu seis. Mas são seis obras-primas. Seu romance Madame Bovary é considerado, no aspecto técnico e estilístico, uma obra de arte tão perfeita como uma sinfonia de Beethoven, a pintura da Capela Sistina realizada por Michelangelo, ou o quadro da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.

Na arte de escrever, há muito mais transpiração que inspiração. Porém entre nós, escritores evangélicos, essa proporção de inspiração e transpiração não é exatamente aquela referida pelo inventor norte-americano Thomas Alva Edson, de 90% de transpiração e 10% de inspiração. O escritor evangélico é um canal sensível à inspiração que nos é dada por Deus, mas ninguém deve ficar estática e ingenuamente aguardando que a inspiração desça do Céu.

Sentindo-se inspirado ou não, o escritor terá que se sentar todos os dias diante de sua mesa de trabalho, mesmo que seja para escrever uma única frase aproveitável. É do hábito de sentar-se todos os dias diante de uma folha de papel em branco ou de um teclado de computador, que o nasce livro. Portanto, a obra de arte literária nasce do trabalho artesanal, perseverante do escritor.

Nunca será demais reafirmar que os maiores escritores brasileiros e estrangeiros foram incansáveis aperfeiçoadores do seu estilo, do seu texto. Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta da moderna poesia brasileira, alcançou a riqueza expressiva e a perfeição que o destacaram dentre os demais poetas de sua geração, graças ao fato de ter sido um incansável domador de palavras. Em um de seus poemas, O Lutador, ele confessa o quanto lhe era difícil trabalhar com elas:

Lutar com palavras

É a luta mais vã.

Entanto lutamos

Mal rompe a manhã.

São muitas, eu pouco.

Algumas, tão fortes

Como o javali.

Não me julgo louco.

Se o fosse, teria

O poder de encantá-las.

Mas lúcido e frio,

Apareço e tento

Apanhar algumas

Para meu sustento

Num dia de vida.

............................

Insisto, solerte.

Busco persuadi-las.

Ser-lhe-ei escravo

De rara humildade.

Guardarei sigilo

De nosso comércio.

Na voz, nenhum travo

De zanga ou desgosto.

Sem me ouvir deslizam,

Perpassam levíssimas

E viram-me o rosto.

Lutar com palavras

Parece sem fruto.

Não têm carne e sangue.

Entretanto, luto.

O escritor português Antônio Lopes Vieira adverte que “há uma dignidade de sintaxe, assim como há uma educação de maneiras; cometer certos erros gramaticais pode ser o mesmo que cuspir no chão.” A arte de escrever tem regras que não devemos infringir se não quisermos passar por mal educados.

No seu famoso Discurso sobre o Estilo, o Conde de Buffon, escritor francês, afirmou que “somente as obras bem escritas passam à posteridade, visto que as novas descobertas e os fatos novos fazem com que os livros mais científicos se tornem obsoletos, ultrapassados.”

O que permanecerá interessante nesses livros será o estilo, a beleza, a arte, a originalidade com que suas páginas foram escritas. Portanto, um livro, antes de ser publicado, tem de ser revisado, polido, aperfeiçoado, com paciência e cuidado, durante meses, ou até durante anos. É o que têm feito os grandes escritores, tanto seculares quanto evangélicos. Tenho dito.

Acadêmico Jefferson Magno Costa



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